Do banco do passageiro, observo o motorista de 49 anos. O aspecto jovial e o corpo forte contrastam com os fios prateados da barba. À sua frente, um barranco de terra encharcada pela chuva desafia seu hatch compacto. “Não vai subir”, ele murmura para uma voz teimosa dentro de si mesmo. Do outro lado daquele barranco, as histórias de uma senhora de quase 100 anos o aguardam, e o tempo dela se esvai a cada segundo.
O primeiro embate é instintivo: ele acelera contra a lama, como tantos jovens guerreiros em seus primeiros confrontos. O carro patina, resistente. A terra molhada ri de sua pressa, lembrando que a jornada do masculino não se faz apenas de força bruta.
Então, ele recua. Observa. Analisa o terreno como a um campo minado. O arquétipo do Senex ? o velho sábio que carrega a experiência dos anos e a prudência do tempo ? tenta segurá-lo, enquanto o Puer Aeternus — o eterno jovem cheio de potencialidades — o impulsiona a tentar novamente.
Mas o terreno não se intimida. O terreno é como a vida. “Desisto”, ele diz só por dizer. Naquele momento, ele é tanto o ancião que pondera quanto o jovem que ousa. “Quantas estradas um homem precisará andar, até que possam chamá-lo de homem?”, questiona Bob Dylan em “Blowin in the Wind”. A resposta, assim como no barranco, sopra ao vento.
Ele acelera com mais cuidado, mas com firmeza. O carro desliza fácil para trás. Como é fácil desistir. O homem me olha como se me visse. Pergunta a mim se devemos voltar outro dia. Compreendo que não sou eu quem deve responder, que outro dia pode ser tarde demais, que a pergunta é um ritual, um diálogo interno entre suas diferentes faces. Mesmo assim, respondo. Entretanto meu “sim, desista!” soa como mais um desafio em sua própria jornada de superação.
Ele deixa o carro descer até o início, como quem revisita antigas feridas para compreendê-las melhor. Chega até a abrir a porteira para ir embora — seu gesto simbólico de rendição. Mas algo mais profundo o move. É o masculino que habita a semente quando cai no feminino da terra.
Na última tentativa (seria a última?), enfim, o carro vence o barranco. Não pela força, não pela técnica apenas, mas pela integração de todas as tentativas anteriores, todos os fracassos. O homem ao volante não é mais o mesmo que começou a subida — está mais completo, mais confiante. Ele persistiu diante de obstáculos que pareciam intransponíveis.
Vitorioso, diante da velha mulher e suas histórias, diante das pessoas, o homem murmura algo sobre minha natureza, uma tentativa gentil de me categorizar em seu mundo de símbolos e certezas. “Não sou”, respondo, e nessa negação me transformo em mais um barranco, agora verdadeiramente intransponível.
O feminino é um mistério onde o masculino patina, tentando decifrar o que só pode ser sentido. Mas nem tudo precisa ser superado ou compreendido. Às vezes, a verdadeira vitória é abrir espaço para que o improvável, o desconhecido e a doçura também habitem nossos caminhos. É o mistério profundo, é o queira ou não queira, é o final da ladeira, é a matéria da vida… É a lama, é a lama… (Imagem: Microsoft Designer Creator IA / Instagram: @acelerandoporai.com.br)