Desde 2010

buru-rodas

Aonde estão as crianças que acenavam pelos vidros dos carros?

O mundo está muito sério… Outro dia, escutando ´Let it be´ pra fugir do trânsito caótico, percebi que há muitos anos não vejo mais as crianças nos bancos traseiros dos carros fazendo travessuras. Me lembro com lucidez que eu e a Bila (minha irmã mais nova), ficávamos ´dando tchau´ aos motoristas dos carros vizinhos; e o êxtase da brincadeira era ser correspondido com um simples aceno de mão. Se este viesse acompanhado de um sorriso, o troféu era maior ainda! Dependendo do estado de espírito, ao invés de ´tchauzinhos´ inofensivos, fazíamos caretas horríveis enfiando os dedos na boca, exibindo dentes e alguns gritos que, certamente irritavam os meus Pais. Mas… a vida seguia dentro da normalidade, com gargalhadas e interessantes quebras de monotonias puramente analógicas e típicas do universo infantil dos anos ´1970.

Viajávamos pelo Brasil inteiro sem cinto de segurança, sem GPS, sem celulares, sem nada! O equipamento de bordo era um pacote de balas Soft (perigosamente ameaçadoras por facilitar um engasgo brutal); alguns sanduíches frios de queijo, água gelada num filtro térmico japonês e o mapa da Revista 4 rodas. Gasolina no tanque e pé na estrada! O sortudo do meu Pai nunca teve, sequer, que trocar um pneu em tantos milhares de quilômetros rodados.

O Chevrolet Caravan de cor bege e placa JM-7007 era uma ilha de felicidade. O ´pau comia´ (no bom sentido…) entre os quatro irmãos para decidir quem iria no banco inteiriço da frente em companhia dos adultos. Sentar “na janela”, então, era questão para a Suprema Corte norte-americana decidir! Apesar das malas, o compartimento de bagagem daquele GM ´raiz´, tinha espaço suficiente para uma soneca em cima do colchonete. Eu dormia, acordava, dormia novamente, e olhava as colinas, as árvores, as nuvens, o sol, a lua… tudo isso ´de cabeça pra cima ou pra baixo´, já que os meus pés, muitas vezes estavam massageando o forro do teto daquele inesquecível carro. As nossas viagens automotivas eram uma festa! Isso foi no século passado e eu era um menino que brincava pelas janelas dos carros. Agora vou contar o que vi recentemente.

Outro dia – há uns meses – fui almoçar num famoso restaurante de Alagoas. Um jovem casal tradicional com dois filhos (um menino e uma menina) adentraram ao ambiente com seus semblantes bem sérios. Talvez estivessem saindo de uma ressaca de ´DR´ (discussão de relação, essa chatice moderna) ou, quem sabe, vindo de um velório. Sei lá! Só sei que o ´climão´ estava no ar. Sentaram, fizeram os pedidos, abaixaram suas cabeças e mergulharam nas suas respectivas telas de celulares. O ambiente daquela turma estava mais para encomenda de féretro do que para um almoço em família. Coisa triste de se ver… Acredito que você já previu o desenrolar e o final da história: a comida deles chegou, todos devoraram seus pratos com os olhos grudados nos smartphones, pagaram a conta e foram embora, creio, infelizes para sempre. Espero não estar julgando. Quem sabe estavam trocando mensagens entre si, sobre filosofia e fé…

O que sei, aliás, o que aprendi pesquisando sobre os efeitos nocivos do excesso de uso de redes sociais na vida dos seres humanos, é que – sim – já é possível perceber perdas significativas de capacidade cognitiva em adultos e, principalmente, em crianças. Isso quer dizer que a aprendizagem e a possibilidade que uma pessoa (de qualquer idade) tem, por exemplo, de prestar atenção somente em um assunto por vez, mesmo que seja por um pequeno período de tempo, está sumindo. Trocando em miúdos, muita gente já não consegue ler apenas duas páginas de um livro ou – simplesmente – esperar pacientemente o peixe fisgar o anzol numa pescaria banal qualquer. É triste!

Dizem os historiadores mais atentos, que há uma tendência humana comum, identificada em praticamente todas as gerações, de “se observar o passado sempre como um lugar melhor do que o presente”. Na realidade, isso não é completamente verdadeiro, pois o mundo sempre foi hostil e perigoso em vários aspectos. Mas, pessoalmente, sou partidário dessa teoria um tanto melancólica e saudosa. Prefiro relembrar das competições com os meus irmãos, quando contávamos nas estradas as marcas dos carros e suas cores. Cada um valia um ponto! Coisa bobinha… mas que traz um gostoso frio na barriga, uma sensação de que vivi num tempo de relações humanas mais palpáveis.

As viagens continuavam. Meu Pai dirigia em silêncio. De vez em quando, cantarolava os sucessos de Nélson Gonçalves. Eu estava lá atrás, sonhando, olhando o mundo pelos vidros do Chevrolet Caravan e, às vezes, sentindo medo de uma placa que dizia: “Cuidado: animais selvagens. Não pare na pista”. E assim a vida seguia… (Imagem: Microsoft Designer Creator IA / Instagram: @acelerandoporai.com.br)