Viva a angústia da liberdade, esse peso de sermos os únicos responsáveis por nossas escolhas. Somos mesmos os únicos? Por anos, caminhamos com esta pergunta nas costas: “O que eu quero da vida?” – como se a existência fosse um cardápio de restaurante, e nós, clientes insatisfeitos, nunca encontrássemos o prato perfeito.
Talvez a pergunta mais sábia seja: “O que a vida quer de mim?”. É uma inspiração copernicana da existência, na qual deixamos de ser o centro do universo para nos tornarmos parte de algo maior. Mas como fazer isso? Jung sugeriria observar os sincronismos, esses momentos em que o acaso parece conspirar com um sentido oculto. Como no caso do meu amigo, que perdeu quase tudo o que lhe dava sentido: o amor, a casa, a mãe.
Dia desses, ao abrir por acaso o capô do carro, ele encontrou um filhote de passarinho. Nu, frágil, quase morto. Qual metáfora poderia ser mais significativa? Às vezes, é preciso perder muito para encontrar algo simples que nem sabíamos procurar. O motor quente que ameaçava a vida do passarinho era o mesmo que o protegia do frio da noite. Não há salvação sem paradoxo, diria Kierkegaard. As mãos que nos salvam do calor do motor são as mesmas que um dia nos empurraram para dentro dele.
A vida não nos oferece apenas problemas, mas também as ferramentas para resolvê-los – ainda que nem sempre as reconheçamos de imediato; ainda que, prontamente, elas não façam nenhum sentido. A vida parece permitir que sintamos o vazio para que possamos preenchê-lo de novo, e de novo. E assim, enquanto meu amigo salvava o passarinho, era também salvo por ele.
Na fragilidade daquele ser minúsculo e dependente, ele encontrou sua própria fragilidade e, paradoxalmente, sua força. Porque, às vezes, é preciso segurar com delicadeza a vida de outro ser para lembrar que a nossa própria vida também merece esse mesmo cuidado. O que a vida quer de nós? “Viver – não é? – é muito perigoso. Porque ainda não se sabe. Porque aprender-a-viver é que é o viver mesmo”, alertava Guimarães Rosa.
Que sejamos capazes de reconhecer que, mesmo nos momentos mais escuros, há sempre uma luz se insinuando – nem que seja no brilho tênue nos olhos de um filhote salvo pelo mais sublime acaso… (Foto: Agência FBA / Instagram: @acelerandoporai.com.br)