“Entro no salão. Dizem-me: ‘Morreu’. Pode alguém entender tais palavras? Pierre morreu. Ele, a quem eu vira partir pela manhã. Ele, a quem eu esperava apertar entre os braços naquela tarde, eu só tornaria a vê-lo morto. E acabou-se, para sempre”, escreveu Marie Curie – a primeira pessoa a receber dois prêmios Nobel em áreas distintas (Física e Química) – em seu diário, no rastro da perda de Pierre.
Pierre Curie, físico francês nascido em 1859, não foi apenas um dos pioneiros da radioatividade – ele foi o parceiro de Marie em descobertas científicas que transformaram o mundo: o polônio, o rádio. Mas também descobriram juntos algo que escapa a qualquer fórmula: o amor.
A morte de Pierre foi brutal em sua banalidade. Estava a caminho do trabalho, almoçou com colegas, e antes de chegar ao laboratório, escorregou na rua molhada e caiu sob as rodas de uma carruagem de carga. Morreu na hora. E, como escreveu Marie, “para sempre”.
Como ele, só em 2024, mais de mil pessoas já foram atropeladas – isso apenas em São Paulo. Também morreram “para sempre”. Também deixaram alguém esperando, alguém que não os verá voltar.
Décadas depois, Rosa Montero emprestaria uma frase do diário de Marie para batizar sua obra mais íntima e dilacerante: “A ridícula ideia de nunca mais te ver”. No livro, ela costura os fragmentos da vida de Marie com os de sua própria história – especialmente o luto pela perda de Pablo Lizcano, seu companheiro. O resultado é um ensaio sobre a ausência e a tentativa obstinada de continuar – mesmo quando o vazio parece ocupar tudo.
“Apenas em nascimentos e mortes é que saímos do tempo. A Terra detém sua rotação e as trivialidades com que desperdiçamos as horas caem no chão feito purpurina. Quando uma criança nasce ou uma pessoa morre, o presente se parte ao meio e nos permite espiar durante um instante pela fresta da verdade – monumental, ardente e impassível.” (Rosa Montero)
Na semana passada, foi a vez de um amigo muito querido – editor deste site – espiar pela fresta. Como não tivera filhos, os sobrinhos preencheram esse lugar de amor. O mais doce deles, o mais gentil, aquele de quem ninguém se lembra de ter ouvido um julgamento sequer, partiu repentinamente…
Foi essa alma rara, esse sobrinho-filho, que meu amigo perdeu. E perdeu-se junto. Agora habita um território estranho, onde cada lembrança é simultaneamente consolo e ferida. As memórias dos que amamos não se limitam a impressões – transformam-se em parte da nossa anatomia, presença invisível e indispensável.
Marie escreveu algum tempo depois: “Devemos continuar trabalhando”. Não como fuga ou negação, mas como um ato de resistência. Persistir – mesmo com o coração em cacos – é uma forma de fidelidade. Porque amar alguém é carregar sua presença, mesmo quando o corpo se foi, e a ausência se instala como sombra.
Gilberto Gil também conheceu essa dor que não tem nome: perdeu o filho Pedro Gadelha Gil Moreira aos 23 anos, em um trágico acidente de carro. Transformou o luto em canção e costurou sua ferida com poesia: “Mães zelosas, pais corujas / Vejam como as águas de repente ficam sujas / Não se iludam, não me iludo / Tudo agora mesmo pode estar por um segundo.”
Versos que não consolam, mas dizem a verdade: a vida é um fio delicado – e amar é saber disso, e ainda assim seguir amando.
(Esse texto é uma homenagem ao amado Guga Amorim).
(Imagem: Pixabay – Divulgação / Instagram: @acelerandoporai.com.br)