Num Uber dirigido por uma mulher, percebi que a motorista estava triste. Mulher sente tristeza de mulher. Triste, mas polida. Música nostálgica ao fundo, quase imperceptível. Puxei conversa, porque adoro uma boa história. Disse que aquela música me lembrava de histórias que não puderam acontecer, amores interrompidos. Ela respondeu: “Nem me fale”. “Me conta você, então”, pedi. E não precisei insistir muito.
Ela me contou que havia conhecido um rapaz engraçado, que se divertiam muito juntos. De imediato, ele lhe disse que não podia se envolver com ninguém, pois tinha sido traído uma vez e não confiava mais no universo feminino. Uma espécie de Dom Juan ressentido, que não daria chance a mulher nenhuma novamente. Mas, em suas ações, ele mostrava-se numa direção oposta.
A motorista, que não gostava das comédias românticas hollywoodianas, em que a impossibilidade de um relacionamento é, geralmente, o trampolim para o enlace, acreditou no quê? Que poderia ser diferente? Não, exatamente. Ela não era tão ingênua. Ela apenas permitiu que ele acreditasse que ela estava acreditando. E isso virou uma confusão tremenda. Quase tudo que tinham construído ali, a amizade, se perdeu, mas a relação continuou. Quando ela teve que dizer que ele era um Dom Juan disfarçado de pobre menino abandonado, ele ficou bravo, ficou nu. Como o rei. Quando ela disse que era muito pouco criativo seguir com essa estratégia hollywoodiana sem final feliz, ele gostou menos ainda. Sendo fã de Luis Buñuel, ela almejava um romance mais surrealista, à la Belle de Jour. E aquela obviedade toda empobreceu a experiência.
Agora, ela teria que seguir o roteiro previsível e dizer o que todas dizem. Ela se tornara óbvia demais. Ele não queria mais que ela seguisse no Uber, porque todo dia tinha uma história maluca para contar, e ele ficava meio agoniado com histórias tão diferentes das dele. Ele se sentia provocado. Então, não sei se por intuição, me lembrei da história de Bertha Benz e de como sua desobediência mudou o mundo do veículo que aquela mulher estava dirigindo agora. Era uma manhã de agosto de 1888. Em uma época em que as mulheres eram confinadas aos afazeres domésticos, Bertha Benz alimentava um plano audacioso em sua mente. Seu marido, Carl Benz, havia criado algo extraordinário: o primeiro automóvel. Mas hesitava em apresentá-lo ao mundo. A insegurança o consumia, e ele resistia a todas as sugestões de Bertha para colocar a invenção nas ruas. “E se eu…”, deve ter pensado Bertha, enquanto observava aquela máquina revolucionária parada na garagem.
Carl havia sido categórico: ninguém deveria sair com sua invenção. Mas Bertha sabia que algumas regras precisavam ser quebradas para que o mundo pudesse avançar. Assim que Carl saiu de casa, ela embarcou seus dois filhos no automóvel, sob o pretexto de um simples chá da tarde na casa da mãe, e deu início a uma jornada que transformaria para sempre a história da indústria automotiva. Ela percorreu 105 quilômetros entre Mannheim e Pforzheim, enfrentando desafios que exigiam mais que coragem – exigiam engenhosidade. Quando um tubo de combustível entupiu, foi um simples grampo de cabelo que salvou a viagem. Ao perceber que os freios começavam a falhar, sua criatividade a levou a uma oficina de sapateiro, onde improvisou um revestimento de couro – uma solução que mais tarde influenciaria toda a indústria automobilística.
O caminho revelou outras necessidades: o carro tinha dificuldades em subidas íngremes, o que levou a melhorias posteriores no sistema de transmissão. Como não existiam postos de gasolina, Bertha comprava ligroína em farmácias ao longo do percurso, estabelecendo, sem saber, o princípio do que viriam a ser os postos de abastecimento.
Em 2008, a rota que Bertha percorreu foi oficialmente nomeada “Bertha Benz Memorial Route”, tornando-se a primeira estrada turística da Alemanha a celebrar a conquista de uma mulher na engenharia automotiva. Mais que uma rota turística, é um tributo à coragem de quem ousa desafiar o estabelecido. Seguir o próprio instinto não é ruim quando se trata de mudar o mundo. Ainda que esse mundo seja apenas o nosso.
Perguntei à motorista como aquela história poderia terminar à la Buñuel. Eu já tinha assistido a todos os filmes dele. Pensamos, pensamos. Faltavam apenas 2 km para eu chegar ao meu destino e muitas reflexões para ela mudar o dela. Decidimos que Belle de Jour era insuperável, ao menos na fantasia, e que as histórias contadas pelos passageiros poderiam se transformar em um livro com um leve filtro buñuelesco. Ela concordou, e me disse que a história dela começaria assim: “Dom Juan acorda numa manhã qualquer e descobre que sua estratégia de homem coitadinho, injustiçado e traído foi roubada por um coach de relacionamentos que agora está ganhando uma fortuna no YouTube…”. Rimos tanto que quase perdi a entrada do meu prédio. “Isso sim é um começo à la Buñuel”, ela disse, já mais animada. “Muito melhor que esconder quem você é”. Nos despedimos como duas conspiradoras que acabavam de planejar uma revolução particular. Afinal, toda mulher merece ser um pouco Bertha Benz e um pouco Catherine Deneuve, mesmo que seja apenas nas páginas de um livro ainda não escrito. (Imagem: Divulgação Daimler-Benz / Instagram: @acelerandoporai.com.br)
(Os artigos, matérias, ensaios ou qualquer outro tipo de expressão intelectual assinados por colaboradores desse veículo midiático, assim como a veiculação de imagens ou vídeos ligadas ao conteúdo do seu texto, enviado(s) pelo colaborador para ilustrar o seu trabalho, são de inteira responsabilidade dos seus autores. A editoria geral desse veículo, necessariamente, não concorda com todas as opiniões aqui expressas. O conteúdo completo (texto, imagem e vídeo) desta coluna tem autoria e responsabilidade legal de Adriana Bernardino).