buru-rodas

Rua sem saída

Viver é atravessar uma estrada sem placas, sem mapa e sem promessa de destino. Desejamos tanto chegar aos 18 – e como os anos passam lentos até lá – para dirigir e ter liberdade, mas, quando as primeiras rugas aparecem, percebemos que o carro nunca teve freios.

Em “Abril Despedaçado”, Tonho (Rodrigo Santoro), após vingar a morte do irmão e saber que a sua própria já está selada, pede ao Velho cego (Everaldo Pontes) que o ciclo de vingança e dor entre as famílias rivais chegue ao fim. “Tá vendo aquele relógio ali?”, diz o homem, “Cada vez que ele marcar mais um, mais um, mais um, ele vai tá te dizendo: menos um, menos um, menos um”.

De certa forma, todos nós somos como Tonho, muitas vezes tentando nos iludir que podemos contar mais um ao invés de menos um minuto. Engatinhar, dar os primeiros passos é uma conquista, mas que nos leva para cada vez mais longe do calor do colo da mãe. A puberdade nos arranca da infância e da inocência; a vida adulta, da adolescência…

“O botão desaparece na abertura da flor, e poder-se-ia dizer que aquele é refutado por esta; do mesmo modo, quando surge o fruto, a flor é explicada como uma falsa existência da planta, e o fruto aparece como a verdade da planta em lugar da flor”, diz Hegel.

Essa dialética do tempo, na qual cada fase necessariamente nega a anterior para que haja desenvolvimento, assombra nossa existência moderna. Resistimos a essa ordem natural, como se pudéssemos congelar determinados momentos.

Hellinger, pai das constelações familiares, depois de atender centenas de pessoas ao redor do mundo, chegou a uma conclusão: por trás da dificuldade de realizar certos desejos conscientes – como comprar um carro, um apartamento; se casar, ter filhos etc. – há outro desejo inconsciente: o de evitar a passagem do tempo, o envelhecimento. Se não é possível parar o relógio biológico, é possível evitar esses ciclos que sinalizam que não somos mais crianças, e que devemos dar conta da própria vida, que caminha para um fim.

Como se, ao não mobiliar o apartamento, ao não criar um lar, ao não permitir que o amor crie suas próprias raízes, pudéssemos permanecer eternamente jovens. Mas o relógio não para. Em cada batida, sussurra: “menos um, menos um”.

Um amigo de quase 50 anos me pediu para escrever uma história picante sobre seu romance com uma garota de 21 em seu Corsa preto. Eu o provoquei dizendo que Nabokov já havia feito algo parecido. É certo que a garota de “Lolita” era um pouco mais nova e, certamente, bem mais inexperiente que a amante do meu amigo. Mesmo assim, o escritor russo-americano ainda é a melhor escolha.

O abismo não é a idade; o abismo é a futilidade. Não sejamos radicais como Nélson Rodrigues, para quem só se ama uma vez. Mas é preciso algo mais que um corpo para que o amor atravesse décadas. José Saramago conheceu Pilar del Río em 1986, quando ele tinha 63 anos; ela, 36. Eles se casaram dois anos depois, em 1988, e permaneceram juntos até a morte de Saramago, em 2010. De certa forma, Pilar já era apaixonada por ele. Leu todos os livros de Saramago publicados em espanhol e decidiu agradecer ao autor. Ligou para ele quando foi a Lisboa. Ficaram juntos até a passagem do escritor.

O descompasso entre gerações não está apenas na idade, mas nas bibliotecas emocionais que carregamos. Quando ela fala dos anos 1980 como história, ele lembra do cheiro das tardes mergulhado na “Sessão da Tarde”, do cheiro da página do livro; do primeiro beijo ao som de “Time After Time” com o ruído do vinil.

Se a juventude do outro atua como na lenda de Drácula, quando o sangue se esgota, estamos novamente envelhecidos, esquecidos de nós mesmos. Como mostra o recente filme “A Substância”, a busca incessante pela juventude pode acelerar outro envelhecimento silencioso, algo que se corrói dentro de nós sem que percebamos. O tempo que passamos tentando permanecer jovens talvez seja o mesmo tempo em que deixamos de existir plenamente. (Imagem: Microsoft Designer Creator IA / Instagram: @acelerandoporai.com.br)