Em uma tarde qualquer, João acelera seu carro pela rodovia. O velocímetro marca 120 km/h em uma via de 80 km/h. Ao seu lado, o celular exibe uma mensagem de sua esposa: “Não se atrase para o jantar com meus pais”. Parece uma boa justificativa para correr.
Em outro lugar qualquer, durante uma briga de casal, o homem diz à namorada, diante de uma prova irrefutável no celular: “Traí você sim, várias vezes, mas foi porque você não me tratou como eu merecia!”
O que essas duas situações têm em comum? A canalhice. “Um canalha jamais assumirá suas escolhas como próprias”, aponta o psicanalista Ricardo Goldemberg (https://www.youtube.com/watch?v=hDhtnXt3TeM). “Ele dirá: ‘Eu fiz sim, mas foi você que me levou a fazer. Foi o mundo, foi a sociedade’. Ou seja, ele assume o ato, até o crime, mas se declara inocente das circunstâncias. Nessa posição, ele se exime de responsabilidade.”
Posto dessa forma, percebemos que a canalhice é mais comum do que imaginamos. Podemos reconhecê-la nas relações pessoais e profissionais. Claro que a complexa teia de autoengano e contradições que permeia o comportamento humano também se reflete no trânsito.
Segundo uma pesquisa realizada pela seguradora americana The Zebra https://www.thezebra.com/, 90% dos motoristas admitem exceder o limite de velocidade; 82% deles reconhecem o perigo dessa prática. “O excesso de velocidade é um dos comportamentos mais perigosos – e caros – que um motorista pode adotar. O custo aos norte-americanos chega a US$ 40,4 bilhões todos os anos”, diz a seguradora.
“Sim, eu estava correndo, mas eu tinha um compromisso importante”. Desculpas não faltam. “O trânsito me forçou”; “Todo mundo está correndo”; “Estou apenas acompanhando o fluxo”, …são mantras repetidos diariamente por milhões de motoristas.
A ironia é que essa dança de desculpas tem um preço – literal e metafórico. Enquanto os motoristas se convencem de que suas razões para correr são especiais, suas carteiras sentem o impacto: US$ 1.177 em aumentos nas taxas de seguro ao longo de três anos, em média. Além disso, 52% dos acidentes fatais ocorrem devido a uma colisão com um objeto.
“É sempre mais fácil achar que a culpa é do outro…”, cantava Raul Seixas. Esse comportamento no trânsito é um reflexo não apenas da sociedade americana, mas de muitas outras ao redor do mundo, demonstrando como lidamos com a responsabilidade em diferentes aspectos da vida.
A transformação começa quando paramos de ver o excesso de velocidade, ou outra infração, como uma resposta inevitável às pressões externas e começamos a reconhecê-lo como uma escolha consciente.
Talvez a verdadeira velocidade que precisamos controlar não seja a dos nossos carros, mas a da nossa tendência de justificar comportamentos que sabemos serem errados. Afinal, o limite de velocidade mais importante pode ser aquele que separa nossas ações de nossas desculpas.
(Os artigos, matérias, ensaios ou qualquer outro tipo de expressão intelectual assinados por colaboradores desse veículo midiático, assim como a veiculação de imagens ou vídeos ligadas ao conteúdo do seu texto, enviado(s) pelo colaborador para ilustrar o seu trabalho, são de inteira responsabilidade dos seus autores. A editoria geral desse veículo, necessariamente, não concorda com todas as opiniões aqui expressas. O conteúdo completo (texto, imagem e vídeo) desta coluna tem autoria e responsabilidade legal de Adriana Bernardino).