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Como Buber pode nos ajudar a ter uma vida mais significativa

O homem entrou na oficina com passos firmes, o rosto contraído em indignação. O motivo de sua revolta era que a grife do tecido do revestimento do banco do carro, segundo ele, estava deslocada, talvez meio centímetro à esquerda.

Sua observação, quase milimétrica, mobilizou toda a equipe, que parou o que fazia para atender ao cliente impaciente. Enquanto acompanhava a minuciosa refeitura do trabalho – entre os ajustes de uma costura aqui, um puxão acolá e a inclinação cuidadosa do banco –, o homem, quase sem perceber, revelou que, após três relacionamentos fracassados, encontrara refúgio no trabalho e em hobbies solitários.

“Ao menos o carro tem que ser como quero, pessoas são complicadas demais”, justificou-se com um meio sorriso, enquanto seus olhos fixavam-se na relíquia dos anos 1980, que ele trata como um membro da família.

Martin Buber, filósofo judeu que dedicou sua vida a entender as relações humanas, nos alertou sobre dois tipos fundamentais de relação: “Eu-Tu” e “Eu-Isso”. A primeira é a relação do encontro verdadeiro, da presença total, do diálogo autêntico. A segunda é a relação da experiência, da utilização, do objeto. O paradoxo de nosso tempo é que temos invertido essas relações com uma frequência assustadora.

O estudo mais longo já realizado sobre felicidade, conduzido pela Universidade Harvard ao longo de 85 anos, chegou a uma conclusão que Buber certamente aplaudiria: as pessoas que vivem mais – e mais felizes – são aquelas que mantêm relacionamentos saudáveis e profundos. Não são os bens materiais, o sucesso profissional ou mesmo a genética que mais impactam nossa felicidade – são nossos vínculos humanos.

Mas por que, então, insistimos em inverter essa lógica?

Talvez porque objetos sejam mais previsíveis, mais controláveis. Um carro não vai discordar de nossas opiniões, não vai nos decepcionar com escolhas inesperadas, não vai exigir que sejamos vulneráveis. Como disse Buber: “O Isso é a crisálida, o Tu a borboleta”. É mais fácil lidar com a crisálida, imóvel, do que com a borboleta, livre.

Mas essa é uma falsa segurança. A vida verdadeira, diria Buber, acontece no encontro. “Todo verdadeiro viver é encontro”, escreveu. E encontro verdadeiro só é possível entre seres capazes de diálogo autêntico.

Heráclito, o filósofo grego, ensinou que um homem nunca entra no mesmo rio duas vezes. Talvez um homem sequer entre no mesmo rio uma única vez, pois, no instante em que toca a água, tanto ele quanto o rio já não são os mesmos. Quando nos cansamos de um carro e desejamos trocá-lo por um modelo mais novo, enxergamos nisso uma renovação simples, objetiva. Mas, com pessoas, a dinâmica é outra.

Cada ser humano é um rio em constante fluxo, mudando a cada instante, mesmo que de forma sutil e imperceptível. Talvez, nos relacionamentos fugazes, não busquemos realmente o outro, mas uma confirmação rasa de quem acreditamos ser. Aprofundar-se exige vulnerabilidade e coragem para encarar o mistério de si e do outro.

Precisamos recuperar a capacidade do encontro verdadeiro. Afinal, quando o último alarme soar e as luzes se apagarem, serão os “Eu-Tu” que iluminarão nossa memória e, talvez, nos façam dizer: “Valeu a pena.” (Imagem: Microsoft Designer Creator IA / Instagram: @acelerandoporai.com.br)