O que fazer com traumas, longarinas e outros amassados humanos

O que é uma longarina? Nos veículos, é uma peça longitudinal, parte do chassi, que fornece suporte estrutural e rigidez, ajudando a distribuir as cargas e aumentar a resistência do automóvel.

O que é o homem? Para Martin Heidegger, um dos filósofos mais influentes do século XX, é um sujeito cuja existência é sempre contextual e situacional, engajado em práticas e relações. Não sendo isolado, o mundo o afeta.

O que é o trauma? Para Peter Levine, doutor em psicologia e especialista no assunto, é a resposta do sistema nervoso a um evento, e não o evento em si. Ou seja, o trauma não é o que nos acontece, mas como interpretamos o que nos acontece.

Um dia, o homem, orgulhoso de seu veículo aparentemente impecável, aquele que ninguém ousa tocar sem receber um olhar de reprovação, recebe o laudo do avaliador na pré-venda: o carro vale 50% menos. Como? “Senhor, a longarina está amassada”, diz quase feliz o vendedor. O dono do veículo se revolta, refazendo mentalmente os caminhos, as lombadas, os erros. A indignação impede a memória de acessar, de imediato, o dia em que o carro passou rápido e desajeitadamente por uma valeta mais funda que o normal. Surgem o arrependimento, a impotência, os julgamentos, a autopiedade. Enfim… não é esta uma metáfora poderosa para nossa própria condição humana?

Heidegger nos ensina que somos “ser-no-mundo”; nossa existência é inseparável do contexto em que nos encontramos. Assim como o carro não existe isoladamente, mas em relação com a estrada, o motorista e o ambiente, nós também somos moldados por nossas experiências e interações. O trauma, nesse sentido, não é meramente um evento isolado, mas uma alteração em nossa forma de ser, perceber o mundo e a nós mesmos. Assim como a longarina se deforma sob pressão excessiva, podemos “deformar” diante do que nos fere, muitas vezes sem darmos o devido valor ou sem termos com quem elaborar nossas dores. Isso altera nossa estrutura interna de maneira que só percebemos muito depois do impacto inicial.

A descoberta de nossa “longarina amassada” – seja uma insegurança profunda, um medo paralisante ou uma crença limitante – pode ser devastadora. Confrontamos nossa própria depreciação, questionando nosso valor e potencial. No entanto é precisamente nesse momento de vulnerabilidade que temos a oportunidade de transcender nossas limitações. Assim como um carro reparado pode não recuperar seu valor original de mercado, nós também não voltamos a um estado de inocência pré-trauma. No entanto, ao contrário de um objeto, nossa essência é diferente. Podemos integrar nossas experiências, transformando a “longarina amassada” em uma fonte de força.

Essa transformação lembra o conceito japonês de Kintsugi – a arte de reparar cerâmica quebrada com ouro, criando algo mais belo e valioso que o original. Nossas “rachaduras”, traumas, rugas e fragilidades, quando reconhecidas, aceitas e trabalhadas, tornam-se os veios dourados que nos tornam quem somos em nossa singularidade.

A verdadeira resiliência, portanto, não está em evitar ou disfarçar os danos, mas em nossa capacidade de nos reinventar continuamente. Cada “amassado” em nossa longarina existencial nos desafia a repensar nossa estrutura, a encontrar novas formas de distribuir o peso de nossas experiências e a aceitar nossas imperfeições. Quanto ao homem da história, ele encontrou alguém que, mesmo com a longarina amassada, aceitou pagar 70% do valor de mercado. Ele segue feliz e mais atento às valetas. (Imagem: Microsoft Designer Creator IA / Instagram: @acelerandoporai.com.br)