“Dias perfeitos”: uma inspiração para dias imperfeitos

Quantos de nós conhecem a sensação de inserir uma fita cassete no toca-fitas do carro? O chiado característico da fita rodando, a ansiedade de esperar nossa música favorita começar, o cuidado ao rebobinar usando uma caneta Bic quando a fita se desenrolava. A coleção de fitas amontoadas no porta-luvas.

É com essa tecnologia “ultrapassada” que somos apresentados a Hirayama, o protagonista de “Dias perfeitos” (Perfect days, 2023), o mais recente filme de Win Wenders (“Paris, Texas”; “Asas do desejo”). Longe de ser uma história sobre nostalgia ou sobre um homem preso ao passado, Wenders nos apresenta à arte de estar verdadeiramente presente.

Hirayama, interpretado brilhantemente por Koji Yakusho, é um homem com mais de sessenta anos que trabalha limpando banheiros públicos em Tóquio. Sua rotina é meticulosamente simples: acorda com o nascer do sol em seu apartamento minimalista, toma seu café da máquina de venda automática e parte para seu trabalho diário. O que poderia ser o cenário para uma história deprimente sobre solidão e alienação se transforma em uma ode à arte de viver conscientemente.

Enquanto muitos de nós corremos pela vida capturando momentos em smartphones apenas para esquecê-los instantaneamente, Hirayama carrega uma câmera analógica simples, fotografando com deliberada atenção os padrões que a luz solar forma ao atravessar as folhas das árvores – um fenômeno que os japoneses chamam de “komorebi” (título original do filme). Hirayama, enquanto dirige seu veículo carregado de produtos de limpeza ao som de Lou Reed, Nina Simone e Patti Smith, nos ajuda a encontrar profundidade no aparentemente banal. E nos inspira a exigir menos da realidade.

O protagonista encontra transcendência nos detalhes mais simples: num jogo da velha com um adversário oculto, na dança espontânea de um sem-teto no parque, no crescimento paciente de uma muda que ele cultiva em seu apartamento.

O filme nos lembra que a vida não precisa ser uma corrida constante por novidades e sensações. Às vezes, tudo o que precisamos é parar, observar a luz atravessando as árvores e, quem sabe, ouvir uma boa música com a mesma atenção de quem a escuta pela primeira vez. A perfeição é simples.

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